Há cerca de um ano, ao atravessar a rua numa manhã gelada de inverno, reparei num letreiro, escrito a giz numa ardósia como a dos tempos de escola primária, que anunciava uma qualquer novidade que não conseguia ler bem àquela distância. O banco de jardim em ferro forjado, disposto num passeio numa zona da cidade que tem sido esquecida no que toca a glamour e a comércio, fazia, no entanto, prever que valia a pena lá voltar num momento mais soalheiro e não apenas espreitar furtivamente pela montra a caminho do trabalho.

Dias depois, voltei para descobrir a autêntica “casa da avó”. A personificação de certeza que já foi feita para classificar muitos outros sítios vintage, retro, e tudo o que se tornou moda nos últimos tempos mas esta é mesmo a verdadeira casa da avó. Nos primeiros instantes sou assaltada pelo sempre intrigante dejà vu mas, neste caso, há factos reais por detrás do dito: eu vivi mesmo numa casa igual àquela. Porque na casa dos avós havia fotografias a preto e branco, e já com os cantos amarelecidos, penduradas nas paredes da sala. Porque havia uma prateleira destacada (vá-se lá saber porquê) para os frasquinhos de especiarias. Porque nos sentávamos em cadeiras rabo de bacalhau. Porque o corredor, sempre à meia-luz, era o lugar privilegiado para se ter o telefone preto de disco em cima de um naperon feito “noutros tempos”. Porque havia (caramba, que arrepio), um rádio que era mais uma peça de mobília. Porque na taberna do outro lado da rua havia mesas com o tampo em pedra de lioz, cuja beleza contrastava com o intenso cheiro a vinho, servido diretamente do garrafão de palhinha para um copo de três. E um contador de telefone igualzinho. E os bolinhos caseiros estavam expostos da maneira simples como na Fábrica Imperial estão as magníficas fatias de salame que mais parecem um bocado de rocha e sabem tão bem. Era assim. E é assim na casa da Bárbara Ribeiro e do Belchior Ferreira que, por acaso, decidiram abrir ao público na Rua Marquês da Fronteira, n.º 113 A, em Lisboa.

Daniela Azevedo – Porque é que decidiram chamar “Fábrica Imperial” a este espaço?
Barbara Ribeiro – Tudo começou quando decidimos recuperar no Arquivo Municipal as plantas originais do prédio e, exatamente nesta loja, estava a Fábrica Imperial, com este estilo de letras que adotámos e tudo. Antes disso estávamos a pensar dar-lhe outro nome completamente diferente; ia ser “A Tasca da Belinha”, em homenagem à minha mãe que foi a grande impulsionadora de todo o projeto. Mas quando vimos o nome “Fábrica Imperial” ficámos completamente apaixonados e decidimos que tinha mesmo que ser este.
DA – E como é que surgiu a ideia de transformar a “Fábrica Imperial” no espaço que é hoje?
BR – Eu nunca imaginei vir a fazer isto! [risos] Ele [o Belchior] tem a sua experiência desde sempre nesta área, na Marinha, mas eu não, eu sou de letras, e nunca imaginei vir a ter um restaurante ou fazer algo ligado à restauração porque sabia que era um ramo muito difícil, cansativo, e que era preciso darmos muito de nós a todos os níveis.
Belchior Ferreira – De qualquer forma, vivíamos quatro lá em casa: eu, a Bárbara, a irmã Catarina e a mãe e éramos sempre nós que tratávamos da parte da comida; eu dos salgados e a Bárbara dos doces e, mesmo quando recebíamos outras pessoas lá em casa, aquilo corria sempre bem. Então, visto que tínhamos este espaço disponível, a Isabel começou a impulsionar-nos a fazer aquilo que já fazíamos lá em casa mas para o público.
BR – O prédio foi construído pelos meus bisavós, temos mesmo história aqui marcada. A minha mãe era muito inteligente e, na altura, eu nem percebi o que ela estava a fazer… [risos] ela plantou no nosso subconsciente, lá muito bem enraizada, a ideia de que devíamos levar a comida mais a sério. A ideia foi crescendo, crescendo e, nem sei bem como, aconteceu [risos]. Bom, na verdade foi porque, entretanto, ela ficou doente, e ambos deixámos de trabalhar para cuidar dela.
DA – O que é que faziam antes de abrirem o café/restaurante?
BR – Eu era supervisora num call center na Avenida Infante Santo, num projeto de que gostava muito.
BF – Eu estive na Marinha, onde tirei o meu curso, trabalhei nalguns restaurantes cá fora e numa empresa de higiene e segurança alimentar. Era um caminho diferente da cozinha embora também ligado à restauração.
DA – O espaço está decorado com muitos objetos que faziam parte da família, fotografias que são reais, de gente com quem vocês têm laços familiares. Isto traz-vos alguma responsabilidade adicional?
BR – Traz, muita [risos]. Quando alguém nos diz que temos “a típica comida da avó confecionada pelos netos” eu fico logo a pensar que estão à espera de comida igual à que nos habituámos a ter lá em casa e isso faz-me sentir uma responsabilidade brutal. Nos doces ainda mais porque, normalmente, as nossas avós eram sempre perfeitas na doçaria…

DA – Pois eram e quando fazíamos birra a dizer que não gostávamos disto ou daquilo, elas tinham sempre uma comidinha para nos agradar…
BF – É verdade! A piada da avó nunca acaba, dá pano para mangas.
BR – Pois é, é uma grande responsabilidade. Às vezes brincamos com isso e dizemos aos clientes que “na casa da avó come-se sempre tudo até ao fim”! [risos] A maior parte das receitas eram, realmente, da minha tia-avó que vivia no prédio aqui ao lado. É engraçado, de facto sentimo-nos em casa porque estão aqui objetos que pertenciam tanto à minha família como à do ‘Chior. Temos histórias associados aos objetos, todas as fotografias são da família. Mas tudo isto tem um lado bom e sentimo-nos acompanhados.
DA – Qual é a vossa especialidade? Um prato ou um doce?
BR – Nos petiscos, o choco frito e as gambas ao alho são, de longe, a grande especialidade.
BF – Nos pratos do dia a chanfana tem tido uma grande aceitação. É um molho um bocadinho pesado, o que faria com que fosse um prato com menos aceitação mas toda a gente tem gostado. Também gosto de fazer e as pessoas dizem que é uma desconstrução da comida portuguesa que é fazer as coisas “à Brás”.
BR – Nos jantares de grupo, mais recentemente, o caril de gambas ou de frango, toda a gente adora. Nos doces, um que sai sempre e que eu tenho que fazer diariamente para ter no balcão é o salame.
DA – Que parece uma rocha… é tão bom!
BR – Pois é, tem tido uma saída enorme e o Doce da Belinha, que é o nosso “doce da casa”. Era o doce preferido da minha mãe. A receita é minha, não é dela, mas ela gostava muito e por isso ficou com esse nome.
DA – Há algum dia em que notem que têm mais clientes?
BR e BF (em uníssono) – A sexta-feira!
BF – Logo ao almoço, a partir do meio-dia, a hora a que começamos a servir refeições e, às vezes, às 15h00 ainda estão pessoas na fila para almoçar. Nos outros dias costumamos servir do meio-dia às 14h00 mas à sexta-feira tivemos que estender.
BR – Mas a adrenalina é muito gira. Ele na cozinha, eu cá fora e mais dois jovens em part-time à hora de almoço. Eles são muito especiais. Nós gostamos de pessoas que tenham humor a servir à mesa e que sejam abertas e com bom espírito.
DA – Vocês acham que o cliente tem sempre razão?
BR – Acho. Todos nós fazemos o exercício de nos pormos no lugar do cliente, acho que isso é o mais importante e em qualquer ramo, não só na restauração. Temos que nos saber pôr do outro lado e tratar as pessoas como nós gostaríamos de ser tratados em qualquer sítio. Isso ajuda-nos a perceber o cliente.
DA – Que histórias engraçadas é que já viveram aqui?
BR – O que nos tem acontecido de mais engraçado são as pessoas que cá vêm e trazem-nos objetos para expor. Temos algumas peças que já não são nossas; são de clientes que acham que aquilo em casa não tem valor nenhum e dão-nos com a condição de expormos em qualquer lado e quando cá vêm, a peça cá está. Acho isso muito giro. mas também já nos aconteceu termos coisas trocadas. Já houve colheres de café e sobremesa que desapareceram e outras que aparecem, não sabemos de onde, e que não são nossas [risos].

O espaço tem capacidade para 40 pessoas, na sala principal, mas há um outro espaço, com televisões, móveis antigos e muitas louças, mais indicado para jantares de grupo – mediante reserva. Na Fábrica Imperial são servidos almoços, lanches e, às sextas-feiras à noite, há petiscos e muita galhofa. Mesmo que não haja companhia para sair, a Bárbara e o ‘Chior garantem que ninguém se sente desamparado. Tudo pode acontecer. Até que alguém te convide para dançar ao som da Smooth FM, onde o rádio está sempre sintonizado. «Gostava que a Smooth tivesse mais jazz português», acrescenta a Bárbara. Fica a sugestão.
