Se a música é universal, Federico Puppi conseguiu fazê-la, também, intemporal

Federico Puppi - O Canto da Madeira

Maria Gadú esteve neste domingo, dia 23 de julho, no edpcooljazz mas, no ano passado, em março, já tinha estado em Portugal com um espetáculo semelhante. Na altura, além dela, um dos seus músicos cativou-me em particular: o violoncelista Federico Puppi. Depois de ter lido a minha crítica, Federico tentou encontrar-me. A tarefa não se revelou propriamente fácil mas lá conseguiu. Tentámos agendar um encontro que, dado os sempre apertados prazos das agendas a que uma digressão obriga, acabou por não acontecer mas o músico teve a incrível gentileza de me deixar na receção do hotel onde estava hospedado um exemplar do seu álbum de estreia a solo, “O Canto da Madeira”.

Desde esse dia, e porque só consigo realmente apreciar música quando estou nas minhas longas viagens diárias de automóvel, o CD não mais saiu do porta-luvas e acompanhou-me nos mais diversos momentos de turbilhão emocional que vivi neste quase ano e meio.

A crítica ao álbum impunha-se mas nenhum dos textos que começava a escrever me parecia estar sequer à altura da tão boa e intensa vibração que senti de cada vez que o ouvi. Não podia fazê-lo por obrigação.

O italiano, compositor, violoncelista e produtor musical (que chegou a querer ser vulcanólogo, dá para imaginar?!), diz que conheceu Maria Gadú de forma inusitada (começaram a gritar um com o outro em italiano).

Ainda criança, com quatro anos, o pequeno Puppi pegou num violoncelo feito à sua medida e começou a experimentar o que já sonhava vir a fazer. E não lhe correu mal de todo. Anos mais tarde, enquanto de dia estudava pelas linhas certas de Bach, Mozart e Beethoven, à noite o apelo de se entregar às sonoridades punk rock era maior. O jazz instalou-se a seguir. Já no Brasil, e depois de tempos menos sorridentes, Puppi conheceu Mari Blue numa roda de samba e decidiram fazer um duo violoncelo-voz. Numa dessas atuações, conheceu Maria Gadú e… espetáculo tinha de acontecer. Em 2015 co-produziu o disco dela “Guelã”, que também teve concertos de apresentação em Portugal, e, no final desse ano, saiu o seu álbum de estreia a solo, “O Canto da Madeira”, que tive nas mãos em março do ano seguinte. Dez músicas absolutamente envolventes e intemporais. Se a música é universal, Federico Puppi conseguiu fazê-la, também, intemporal.

As palavras de Federico Puppi no seu álbum de estreia a solo
As palavras de Federico Puppi no seu álbum de estreia a solo

O álbum abre com ‘Rua São Braz’. Onde quer que seja, esta rua foi abençoada por esta força da natureza que é Federico Puppi. A melodia parece exibir uma certa simplicidade que logo percebemos que é enganosa tal é a profundidade emocional que os acordes nos fazem sentir. “O Canto da Madeira” é um disco solto, bonito, rico e segue o tema muitíssimo diversificado que são as várias atitudes por onde o amor nos conduz.

Soberba é também a ‘Dança da Chuva’, disponível mais abaixo. De repente tens 8 anos. Chegaste a casa que nem um pintainho acabado de sair da casca do ovo. A mala da escola está irremediavelmente desfeita e os livros com os trabalhos de casa desbotados e sem qualquer conteúdo legível. Sabes que isto não vai acabar bem. A tua mãe deixa o queixo cair e ensaia um discurso altamente moralizador que sabes que mereces porque ninguém te mandou partir o guarda-chuva logo de manhã enquanto te armaste em espadachim destemido. Sem que nada o fizesse esperar, ela manda-te para a banheira. O banho quente sabe a sonho e no final a tua mãe dá-te um grande abraço enquanto promete que te vai ajudar a encarar a professora os livros desfeitos. Se um dia de inverno pode acabar melhor? Pode. Com uma omelete e batatas fritas afogadas em ketchup que ela te preparou à laia de consolo. Lá está, outra forma de amor, capturada pelas cordas de Puppi.

No outro extremo das estações do ano, temos a quase adolescente composição de ‘Dente de Leão’. Ah quando as bailarinas em pontas te ouvirem, Federico… a música cheira a relva nova, a salão de baile pintado de fresco, ao sol a incidir nas madeiras envernizadas… Não a ouvimos mas quase de certeza que uma cigarra acompanhou os ensaios do violoncelista enquanto preparava este tema. Tudo é novo na primavera e tudo tem dois caminhos possíveis, sendo que o da felicidade é qualquer um deles.

Os vestígios dos seus tempos de estudante de jazz estarão presentes na quase totalidade do álbum, ainda que cheios de uma harmonia refrescante, mas ‘Blues Jeans’ e o desenfreado e pesado ‘Touareg’ mostram o tanto mais que Federico Puppi sempre quis perseguir. Melodia e estrutura são a regra mas conseguidas com tamanha mestria que nem notamos esse esforço.

‘Bebum’ apanha-nos a esboçar um sorriso. Eis uma música que imagino, claramente, a ser banda sonora de um filme de animação em plasticina.

Certamente que a “marca de água” de Federico Puppi está inscrita na história da música. Brasileira, italiana, portuguesa… nunca vamos saber. Apenas que as cartas estão lançadas para quem tem um mundo pela frente para conquistar. E muito público entre os resistentes à música instrumental.

Daniela Azevedo

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