Camané ao Cotonete: «O fado está na moda»

Camané lança hoje “Infinito Presente”, o seu sétimo álbum que surge 20 anos depois do trabalho de estreia, “Uma Noite de Fados”, e cinco anos após “Do Amor e dos Dias”. Os concertos já marcados até Julho vão incluir alguns dos fados novos. ‘A Correr’, um inédito de Alain Oulman com letra de Manuela de Freitas, foi a primeira canção a ser apresentada deste novo álbum de Camané. Além do inédito do compositor de Amália Rodrigues, incluem-se duas composições de José Júlio Paiva, bisavô do fadista. O lançamento levou-me a casa de Camané que, amavelmente, abriu as portas a um simpático café.

Daniela Azevedo com Camané na casa do artista em Lisboa
Daniela Azevedo com Camané na casa do artista em Lisboa

“Infinito Presente” surge cinco anos depois do último álbum e traz um alinhamento composto por 17 temas. O que nos dizem estes fados sobre o Camané de 2015?
Este disco reflecte um bocadinho do percurso feito nestes cinco anos. É um disco muito diferente do anterior; é uma evolução do que se passou nestes últimos tempos. Também não sou de fazer discos todos os anos porque os concertos é que dão uma dimensão diferente aos temas. O disco fala muito do tempo: o passado, o presente e o futuro. O factor tempo está muito presente mesmo nas histórias de amor e da vida quotidiana.

Manuela de Freitas e José Mário Branco são dois nomes que te acompanham em todos os álbuns. A sua presença é uma espécie de garantia da continuidade de uma determinada sonoridade?
A mim não me faz confusão nenhuma, os discos dos Beatles também tinham sempre o mesmo produtor. Quando, há 20 anos, lancei o meu primeiro disco pela EMI, aos 27 anos, eu queria criar uma sonoridade que tivesse a ver com a minha forma de estar no fado porque, se por um lado eu vinha de um meio de fado tradicional, por outro queria criar uma sonoridade que tivesse a ver comigo. Havia muitos discos de fado dos anos 70 e 80 que só se percebia de quem eram, quando o fadista começava a cantar, porque de resto era tudo muito igual. O José Mário foi quem captou bem essa minha vontade. Ao nível da linguagem também conseguimos uma poesia que me agradava muito, A Manuela de Freitas tinha uma fórmula nova que me ajudava a chegar às pessoas da minha idade através de poemas sobre o quotidiano e isso foi importante, além dos arranjos que o José Mário fez. São os dois muito apaixonados pelo fado, a Manuela passou-lhe muito disto, dos fados da Amália… foram a escolha certa, que levou a uma evolução e eles também me passaram muito conhecimento, como o sentido da palavra, o passar do registo emocional dos poemas, o bom gosto… eu não queria nada aquela coisa melosa do fado… estou muito à vontade e muito confiante na relação que tenho com eles.

O que é que determina a escolha de um poema para se transformar em fado?
Acima de tudo é a intuição. Por exemplo, os poemas de David Mourão Ferreira são lindíssimos, actuais, super bem escritos e têm uma musicalidade incrível, mesmo os que não foram escritos para fado. Não é difícil criar um fado a partir dele. Há alguns que não têm estrutura para adaptar aos fados tradicionais mas são tão musicais que o José Mário faz música para eles. Depois também há um lado de identificação emocional com o poema; uns contam histórias outros são mais introspectivos, sobre o amor ou a vida, mas com uma linguagem boa. Neste disco fui buscar uma música do meu bisavô. Nunca tinha ouvido um disco do meu bisavô e fui encontrá-lo só agora através de um coleccionador nos Estados Unidos. É um disco de 1925, com dois fados; um é um fado tradicional e outro tem influências de Coimbra, porque o meu bisavô era da Murtosa. O som é um bocado horrível porque o disco é de massa (risos) mas gravei-os agora. É engraçado que mesmo em coisas escritas há tantos anos se conseguem encontrar vivências do nosso dia-a-dia. A Manuela diz que não percebe nada de música mas depois quando escreve, os poemas dela também têm uma musicalidade incrível.

Há algumas influências musicais na tua vida fora do fado?
Gosto imenso de jazz, música brasileira e tango; gosto de Cole Porter, Frank Sinatra, Billie Holiday… mas também gosto da música que se faz hoje, como a dos Rolling Stones, Paul Simon, Beatles, Serge Gainsbourg e Charles Aznavour. A música que mais me ficou é, no entanto, o fado porque mesmo quando na adolescência cantava outras coisas que não fossem fado, tudo soava a fado; um fadista tem uma característica de canto que não consegue mudar.

Camané, tu és um daqueles fadistas que já assistiu ao quase desvalorizar da música portuguesa, nomeadamente na atenção que as rádios lhe dedicavam, até veres o fado ser considerado Património Imaterial da Humanidade. Como é que olhas para esta evolução do fado?
Foi um percurso longo. Em miúdo tive uma fase em que era gozado na escola porque cantava fados, até os professores gozavam comigo. A minha primeira entrevista, há 20 anos, não foi uma entrevista, foi um interrogatório! Com o meu primeiro disco fiz dois concertos em Portugal e 30 fora de Portugal. Só com o segundo disco é que alguns jornalistas se começaram a interessar por aquilo que eu fazia. O que é certo é que aos poucos comecei a ganhar prémios, o que deu para perceber que tinha uma certa popularidade. Em 2000 começaram a aparecer mais mulheres fadistas novas, a cantarem com bastante sucesso, e isso também ajudou, mas no início estive um bocado sozinho… só havia a Mísia e o Paulo Bragança e éramos todos diferentes. Com o passar do tempo as pessoas ganham a sua personalidade artística mas foi complicado. Em miúdo eu ouvia fado às escondidas, eu era “o esquisito”! Ainda hoje quando vou no carro a ouvir fado, se parar num semáforo com outros carros ao lado, baixo o volume do rádio. As pessoas até podem pensar que me estou a ouvir a mim, sei lá (risos). Mas em jovem também tinha grupos de amigos com quem ouvia rock e pop. As casas de fado é que levaram a malta nova a ouvir fado e começou a haver um certo interesse por aquilo que eu fazia. A Amália, que me ouviu na ‘Maldita Cocaína’, do La Feria, foi quem ligou para a EMI a dizer que eu «estava no bom caminho. Era bom alguém pegar nele e levá-lo a gravar um disco». E foi o que aconteceu. Hoje em dia até canto em festivais de jazz e rock e as pessoas vão ver, o fado está mesmo na moda.

Hoje em dia também se fala em duas gerações do fado. Em qual delas te encaixas?
Não sou desta geração de fadistas mas também me encaixo porque talvez tenha sido eu a começar isto tudo. Eu cresci no meio da geração antiga mas quando comecei a gravar abri alguns caminhos para que esta geração tivesse espaço.

Trabalho feito por Daniela Azevedo para o extinto site do grupo Media Capital Rádios: Cotonete – Música e Rádios Online

 

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