Cerca de 20 minutos depois das 22h00 de domingo, 5 de janeiro, 1 mini-autocarro e uma carrinha partiram do largo dos Paços do Concelho com curiosos a bordo rumo ao roteiro do Cantar e Pintar dos Reis 2020. Noite fria, bocas fumegantes, várias camadas de casacos, luvas, cachecóis e gorros a antecipar uma noite que, por tradição, é só para os mais corajosos.
Seguimos por alguns quilómetros até à primeira paragem: Casal Monteiro. As ruas são escuras e muitos já dormem. Aqui e além, de algumas janelas ainda espreitam iluminações de Natal.
Quem “pinta” os reis vai à frente, acompanhado de um “petromax”, que ilumina a parede a ser pintada. O momento é levado muito a sério, a pintura feita a preceito, como se de um momento solene se tratasse (e é verdade) e a este silêncio segue-se, então, o curto, mas poderoso, Cantar dos Reis.
Numa das casas, uma criança estava à janela: “Despachem-se lá que amanhã tenho escola!” – gritou, pelo meio das gargalhadas de todos, mas a mostrar que, mesmo quando o calendário não ajuda, os mais pequenos já fazem questão de cumprir com a tradição de esperar pelos Reis.
Sendo conhecida apenas como “Cantar dos Reis” ou “Cantar dos Reses” a manifestação celebrada no concelho de Alenquer implica a participação quer dos cantores-reiseiros quer dos pintores-reiseiros e, resumindo as características comuns da expressão cultural nas diferentes povoações, o ritual começa pela constituição dos grupos que anualmente, na noite de 5 para 6 de janeiro, se reúnem para Pintar e Cantar os Reis nas suas localidades. Sem ensaios ou combinações elaboradas, o grupo junta-se espontaneamente e parte pelas ruas da povoação. Os membros que vão pintar seguem à frente e, em silêncio, munidos das tintas, pincéis e lanternas pintam as fachadas, os muros e as entradas das casas com os tradicionais desenhos dos Reis. Mais atrás seguem, em maior número, os cantores – o coro liderado pelo apontador.
Ao fundo da rua, esperava-nos, de portas abertas, o sr. Eduardo, na casa de saída do Cantar dos Reis de Casal de Monteiro onde habitualmente se reúnem antes da saída. “Há aqui uns miminhos para os convidados que há alguns anos aparecem aqui. Eu já há uns 40 anos que estou metido neste grupo”.
As cores das pinturas têm também um significado: “Nos casais, se não houver luto, é pintado a vermelho e a azul; se houver luto nessa casa é tudo pintado a azul. Primeiro fazem-se uns testes, uns riscos na parede para afinar a cor. Um dos pintores é o meu irmão, o mais antigo. Faz cinco pés de flores, o coração é para quem tem filhos. Se for recém-nascido é um coraçãozinho no meio. Até três filhos, faz-se três corações. Um coração entrelaçado é para os mais jovens, recém-casados. Vamos continuar a manter esta tradição nas nossas terras”.
As cores tradicionalmente utilizadas no ritual são o vermelho almagre e o azul de anilina. Também se escreve o ano e os Bons Reis seguidos da sigla “V.R.” que pode ser lida como “Viva a República ou Vivam os Reis!”. Seguimos para Catém. Escorre a tinta ainda fresca nalgumas paredes. Mantém-se o silêncio e o percorrer quase em surdina pelas ruas até se chegar às casas designadas. Aqui os cânticos são ligeiramente diferentes, mas a tradição também se mantém há muito.
Na Península Ibérica o Dia de Reis começa a ser celebrado devido à chegada dos Frades Franciscanos e Dominicanos a este território. Este facto permite sublinhar a importância de Alenquer no processo de difusão desta celebração. Em Portugal, foi na região do concelho de Alenquer que estas Ordens foram primeiramente acolhidas – entre 1212 e 1218 Frei Zacarias chega a Alenquer para fundar um convento Franciscano e Frei Soeiro Gomes, primeiro provincial dominicano da Península Ibérica (1221-1223) funda, no termo do concelho de Alenquer, no alto da Serra de Montejunto, o primeiro convento Dominicano português.
Nas povoações onde se pratica o Pintar e Cantar dos Reis várias gerações estão envolvidas na organização da tradição e a transmissão geracional dos conhecimentos e práticas encontra-se atualmente assegurada pelos diferentes Grupos dos Reis.
É o que acontece em Penafirme da Mata; mais uma paragem, esta já depois da meia-noite, com o termómetro do carro a marcar 2 graus e a acenderem os alertas de formação de gelo na estrada. Seguimos, mais uma vez, por uma rua pouco iluminada. Numa das casas, onde já se dorme, a vontade, contudo, de receber os Reis é tão grande que, no quintal, deixaram acessível uma cadeira com uma garrafa de licor e alguns copos pequeninos ao pé. Assim, os reiseiros sabem com o que contam e sabem que ali podem cantar. Mais à frente, há mais um grupo formado e uma casa de corajosos de portas abertas. O grupo é grande, a cantiga também, mas o momento reconfortante de uma comida e bebida dentro de portas também acontece.
A rota ainda incluía paragens por Olhalvo, Pocariça, Bairro, Cabanas de Torres, Paúla, Cabanas do Chão, Abrigada e Ota. Anos houve em que toda esta volta acabou já com o sol a nascer.